Ana Magalhães – MAC USP
Diana Vidal – IEB USP
Paulo DeBlasis – MAE USP
Rosaria Ono & Solange Lima  – Museu Paulista da USP

Nas últimas semanas, assistimos ao debate em torno do leilão das obras de arte da coleção do Banco Santos, que estiveram sob a guarda do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP) nos últimos 15 anos. Tal fato levantou uma série de questões acerca do interesse público  sobre essas obras e das consequências de sua dispersão. Elas foram as primeiras de um conjunto maior de objetos de várias tipologias cuja salvaguarda foi destinada à Universidade de São Paulo, por determinação judicial no processo de falência do Banco Santos, em 2005, e da condenação de seu proprietário por crime contra o sistema financeiro nacional e lavagem de valores. Assim, a USP recebeu um total de 18 mil objetos, distribuídos entre o Museu de Arte Contemporânea (MAC USP), o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB USP), o Museu Paulista e o Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE USP). Naquele momento, eles foram resgatados em situação muito precária em função do transbordamento do rio Pinheiros e da inundação do galpão em que estavam guardados. As quatro unidades da Universidade chamadas a atender a esta ação disponibilizaram suas equipes de curadoria, catalogação e conservação para tanto. O trabalho por elas efetuado, que envolveu técnicos especializados e estagiários, foi feito em condições extremas, pois a água e a energia elétrica haviam sido desligadas. Além disso, alguns objetos estavam tomados por fungos, bactérias e animais xilófagos, com riscos evidentes de saúde para os profissionais envolvidos.

A USP foi, assim, considerada como a instituição ideal para o depósito dos bens, não só para a salvaguarda das coleções, mas porque permitiu o rápido acesso público a esses objetos de grande valor cultural, por meio da pesquisa e de ações de difusão (exposições e publicações). Além das iniciativas dos museus envolvidos e do IEB em catalogar, pesquisar e expor esses objetos em suas respectivas sedes, em 2014, a exposição “Coleção, ciência e arte”, com o apoio da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária, reuniu uma seleção dos objetos resgatados pela Universidade, numa curadoria de diálogo interdisciplinar.[1]

O MAC USP recebeu um conjunto de 1597 obras de arte moderna e contemporânea – de grandes artistas brasileiros e estrangeiros – além de 411 objetos de outras tipologias. A partir da transferência do conjunto para o Museu, a equipe de conservação, dois documentalistas e uma curadora foram responsáveis por imediatamente processá-lo. Criou-se assim um banco de dados para sua catalogação, e priorizou-se a ação de higienização, restauro das obras que haviam sofrido com o alagamento no galpão da Marginal Pinheiros, e a encomenda de trainéis e mapotecas para acomodá-las em um espaço de 1704 m2 da reserva técnica que o MAC USP possuía no 3o andar do Pavilhão da Bienal. Sobre essas ações, o MAC USP investiu R$ 20.000.000,00 – valor calculado com base nos gastos com insumos, mobiliário de reserva técnica e horas de trabalho das equipes do Museu na salvaguarda das obras, e apresentado ao juiz responsável pelo processo em 2017. Em 2008, a primeira exposição com um recorte da coleção de fotografias foi realizada, sendo resenhada com grande entusiasmo pela imprensa local.[2] A ela seguiram-se mais 16 exposições, sempre gratuitas ao público, em que conjuntos de obras da coleção foram apresentados pelo MAC USP, ora em diálogo com seu acervo, ora apresentando recortes que trouxeram novas leituras da história da arte moderna e contemporânea.

O IEB USP ficou responsável pela conservação e salvaguarda de 7.004 peças, acervo constituído por cartografia histórica, matrizes de xilogravuras e literatura de cordel. Ao chegar ao instituto, os materiais precisaram ser imediatamente isolados para não contaminar o restante do acervo e seus frequentadores. Inicialmente, foram expostos à ventilação constante para eliminar a umidade. Na sequência, higienizados mecanicamente para tirar as colônias fungos e manuseados com o objetivo de retirar os materiais metálicos que danificavam o suporte. Depois foram encaminhados ao Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares da USP para desinfestação por irradiação de cobalto 60. Findo o processo, foram acondicionados em papéis neutros e pastas de polionda que garantem sua conservação. Um mobiliário específico para o acondicionamento dos mapas foi adquirido de modo a garantir a preservação do suporte. A partir daí iniciou-se a catalogação em um banco de dados, de modo a facilitar a pesquisa e disponibilizar as informações para consulta, o que permitiu a realização dos seguintes eventos: Mostra “Mapas em Movimento: a Criação de Mundos Imaginários” (2006); Ciclo de Palestras: “Mapas, Império e Colecionismo”; o Vídeo “Mapas em Movimento: a Criação de Mundos Imaginários”, dirigido por William Toledo de Lima, com sonorização de Olívia Brenga e Adams Carvalho (2007); bem como a criação do Site de “Cartografia Histórica”, sob coordenação da Profª. Íris Kantor, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Atualmente, todos os mapas encontram-se digitalizados. As imagens e informações referenciais estão incluídas na webpage do IEB USP. Somente entre 2005 e 2011, o IEB investiu a quantia de 900 mil reais, em valores de 2011, em recursos materiais e humanos para o tratamento de todo o acervo do Banco Santos de que recebeu a guarda.

O MAE USP, por sua vez, recebeu a guarda de 3248 artefatos arqueológicos e etnográficos que integravam a Coleção Banco Santos. Os artefatos arqueológicos (bens da União e, portanto, inalienáveis) consistem, sobretudo, de material brasileiro: urnas, tangas, estatuetas e adornos de grande qualidade estética, provenientes, em sua maior parte, de culturas pré-coloniais amazônicas. Há, também, um conjunto de objetos arqueológicos provenientes do Egito, Mesopotâmia, Grécia, Roma, região andina e México. As peças etnográficas são adornos com plumária, artefatos cerâmicos e trançados (cestarias/tecelagem) produzidos por diversas sociedades nativas do Brasil, como os Bororo, Assurini, Kadiweu, Rikbaktsá e Waujá. Além da notável beleza visual que exibem, representam também importantes aspectos simbólicos dessas sociedades nativas, incorporando diversos materiais provenientes da flora e fauna das florestas brasileiras. Ao longo dos anos, o MAE USP fez grandes investimentos no resgate, catalogação e curadoria desses artefatos, sobretudo por parte de sua equipe de profissionais, e também através da construção de um novo espaço de reserva técnica visitável para sua guarda, incluindo climatização e equipagem, o qual se encontra permanentemente aberto à visitação pública. Estes materiais foram utilizados também em mais de uma dezena de exposições nacionais e internacionais, e vem subsidiando ainda diversos estudos acadêmicos envolvendo principalmente a investigação do universo simbólico das populações nativo-americanas do passado e do presente. Trata-se, assim, de um patrimônio de valor cultural inestimável, que deve permanecer ao alcance da sociedade brasileira.

Já o Museu Paulista se responsabilizou pelas coleções de documentos textuais, iconográficos e cartográficos além de objetos, entre eles, aqueles que integraram a exposição Escrita da Memória (Banco Santos, 2004) e material bibliográfico totalizando 6.156 itens. Foram providenciadas duas salas no edifício do Museu do Ipiranga para receber o material, uma equipe foi contratada especialmente para dar apoio à equipe do museu e o número de estagiários foi ampliado para uma operação em cadeia de: identificação, higienização, fotografação, retirada de molduras quando era o caso, para melhor preservar o original, acondicionamento em novas embalagens, catalogação e, por fim, avaliação de cada um dos itens. O especialista em informática do museu desenvolveu um programa específico, derivado do banco de dados institucional, para armazenar e localizar os documentos, e foi adotado um sistema de notação que evidenciasse as tipologias recebidas. Dado o número elevado de itens, não era possível fazer isso sem sistematizar o processo desde o início, e foi criada uma verdadeira linha de  produção, que mobilizou as equipes de documentação e conservação, além da infraestrutura de informática.

Após a conclusão do processo, que durou quase um ano, os documentos foram paulatinamente sendo integrados às reservas e às rotinas do museu. Não foi difícil atender a uma das principais exigências do processo de guarda legal, a saber, o uso e disponibilidade para pesquisa e exposições. Muitos itens foram integrados às exposições, motivaram pesquisas e foram mobilizados em aulas de graduação e pós-graduação. No Museu Paulista ocorreu a exposição temporária “Acervos para Descobrir” em 2006, mobilizando esse acervo. De 2006 até 2010, o Museu Paulista arcou com 1,3 milhão de reais de gastos para salvaguarda deste acervo, entre custos de material de conservação e mão-de-obra.

Apesar disso, em relação a todas essas coleções caminham iniciativas, coordenadas pelo juízo da falência do Banco Santos, de leilão para alienação dos bens, em estágio mais ou menos avançado, que minimizam, senão ignoram por completo, não só o enorme dispêndio de recursos públicos e o esforço empreendido pela Universidade de São Paulo no resgate, recuperação e conservação desses bens, mas também a relevância de que esse patrimônio cultural e histórico permaneça acessível à população brasileira. É imprescindível – e isso vem a Universidade tentando incansavelmente demonstrar – que o interesse público na universalização do acesso a esse patrimônio não seja atropelado pela busca de uma cega e irrestrita satisfação financeira dos credores da massa falida.

A experiência da USP nesses 15 anos de trabalho com a Coleção Banco Santos comprova a importância de uma política pública de acervo e do papel fundamental das instituições públicas na preservação da cultura do país. Foi através das estruturas e dos recursos humanos da USP que a Coleção Banco Santos demonstrou seu enorme potencial de pesquisa, de ensino e de difusão científica. Que sua história se mantenha nessa rota, para o bem da sociedade.


[1] Cf. Cat. exp. Coleção, ciência e arte. São Paulo: Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária, 2014. A exposição foi realizada no Centro Universitário Maria Antônia, também da USP.

[2] Ver exposição Fotógrafos da vida moderna, que esteve em cartaz na sede do MAC USP no 3o andar do Pavilhão da Bienal entre 10 de julho e 28 de setembro de 2008. Cf: http://www.mac.usp.br/mac/conteudo/exp/08/txt/arquivos/13/folder.pdf

ARTIGO: As coleções do Banco Santos na USP
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